sábado, 26 de março de 2016

Tradução de entrevista da patinadora Julia Lipnitskaya

Julia Lipnitskaya, campeã da Europa em 2014, concedeu uma entrevista à jornalista Elena Vaytsekhovskaya onde falou sobre os desenvolvimentos mais recentes na sua vida e na sua carreira. Há poucos meses, Julia confirmou que tinha terminado a relação profissional com a treinadora Eteri Tutberidze, tendo se mudado para o grupo de Alexei Urmanov em Sochi. Urmanov foi campeão olímpico em 1994 na categoria de individuais masculinos e é actualmente um treinador com excelente reputação.
O link original da entrevista está aqui e tem bonitas fotos da jovem patinadora: http://www.sport-express.ru/se-velena/reviews/979675/


Tradução da entrevista

Pergunta (P) - Vamos começar pelo princípio. Quando tomaste a decisão de te mudares para Sochi estavas muito optimista. Qual é a realidade?
Julia Lipnitskaya - Interessante. Não foi só por causa dos treinos mas também por começar a viver sozinha. Fui embora sozinha pela primeira vez na minha vida. Primeiramente aprendi que a comida não cresce no frigorífico e que o shampoo não se materializa no chuveiro. Anteriormente eu nem pensava nessas coisas. No início eu tinha de ir a pé ou de bicicleta para os treinos e não foi fácil. Depois de construírem o circuito de fórmula 1 em Sochi, eu tenho de fazer um grande desvio e, se tiver na bicicleta, tenho de carregá-la quando atravesso as pontes no caminho.Todos os dias nos treinos ficava chocada. Tudo era novo. Por exemplo, o grande número de treinos para a condição física que eu tinha de conciliar com o trabalho no gelo. Em Moscovo não trabalhávamos a condição física como parte do processo - apenas a coreografia. Cada um tinha que olhar pela sua condição física sozinho. Em Sochi nós também trabalhamos a coreografia todos os dias mas é um extra com as outras coisas. Inicialmente eu pude faltar a algum desse trabalho fora da pista de gelo pois eu tive de preparar-me para os campeonatos nacionais e tive que trabalhar muito no gelo. Mas não foi fácil. Aparentemente comparada com os outros integrantes que patinam no grupo de Urmanov, eu não tenho músculos nenhuns. As suas tentativas para me fazer desenvolver alguns músculos num curto espaço de tempo resultaram em eu não ser capaz de me levantar no dia seguinte depois de um dia inteiro de trabalho no ginásio.

P - Mesmo no início da temporada, enquanto ainda estavas a treinar em Moscovo, eu fiquei francamente surpreendida pela maneira como os teus programas foram construídos. Especialmente com todos os teus saltos na primeira metade do programa. Era o melhor que conseguias fazer na altura?
Julia - Por que é que todos os saltos estavam na primeira metade do programa, especialmente no programa curto? Francamente eu não me lembro. Eu tive problemas no programa livre. Se te lembras, o meu programa da temporada olímpica tinha cinco saltos na segunda metade do programa. No ano seguinte foi como se nada tivesse mudado mas eu fui capaz de realizar duas combinações de saltos, um peão e uma sequência de passos na primeira metade do programa. E era só isso, o programa acabava. Durante toda a temporada fui incapaz de patinar um programa limpo. Nem sequer durante as sessões de treinos. As competições eram ainda piores. Quando percebes que não consegues patinar o teu programa, que nunca o fizeste nem nos treinos, é só nisso que consegues pensar. Obviamente que isso não traz confiança.

P - Isso aconteceu durante toda a passada temporada olímpica?
Julia - Durante ainda mais tempo. A única vez que eu fui capaz de fazer um programa limpo, mesmo que fraco, foi em Outubro passado no Skate America. Os outros dois programas limpos aconteceram antes dos campeonatos nacionais quando eu já estava a treinar com Urmanov e outra vez mesmo antes da Taça da Rússia* em Saransk.

*Nota: esta referência à Taça da Rússia corresponde a uma competição meramente interna.

P - Havia uma razão para estar optimista logo após a mudança de treinador?
Julia - Não de todo. A primeira coisa que eu encontrei no grupo do Urmanov foram maneiras de entrar nos saltos com que eu não estava familiarizada. É a coisa mais importante para um patinador: se a entrada for errada o salto já não vai acontecer. Eu sempre pensei que seria a mesma coisa. E depois lá estava o Alexei Urmanov a pedir-me para fazer um triplo lutz a seguir a passos. Por exemplo: passos-salto-salto-mudança de aresta na lâmina-salto. Todos os dias estávamos a saltar com entradas diferentes mas eu nem sequer me estava a acostumar com um certo grupo de elementos. Foi um pesadelo. E todos à minha volta estavam a fazer saltos triplos sem dificuldades. Eu nem sequer conseguia fazer saltos duplos. Eu realmente a sentir-me mal não só por mim mas também pelo treinador. Eu pensei que ele olhava para mim e pensando "No que é que eu me fui meter? E esta é a rapariga que eu tenho de levar aos campeonatos nacionais?" E depois de repente tudo ficou bem. Os saltos reapareceram e nós até mudámos a ordem dos elementos.

P - Durante estes últimos meses, eu penso que tu tinhas de responder a ti própria apenas a uma pergunta.
Julia -Se eu quero continuar a patinar? Eu quero. Claro que tenho momentos bons e momentos maus, umas vezes as coisas funcionam e outras vezes nem por isso, mas isso acontece a qualquer atleta por isso tudo bem. A coisa mais importante é que eu sei quais são os meus objectivos e sei que eles estão ao meu alcance.

P - Trabalhar com o Alexei Urmanov é interessante?
Julia - Muito. Há uma variedade infinita. Se há qualquer coisa que não funciona ele apresenta 800 outras coisas que eu posso fazer para corrigir o erro. Sente-se que o Alexei Urmanov é ele mesmo um patinador individual e sabe exactamente como os elementos devem ser feitos e como afinal as coisas mais difíceis podem ser feitas com facilidade.

P - Já tens mais ideias para os programas da próxima temporada?
Julia - Sim mas só no geral. O meu objectivo a curto prazo é trabalhar no ginásio e preparar os meus músculos para a labuta. É o que eu vou fazer enquanto o Alexei Urmanov vai estar fora - acompanhando o Deniss Vasiljevs aos mundiais nos Estados Unidos. Não é só o meu tronco que é fraco mas também as minhas pernas.


P - E mesmo assim os teus saltos parecem ter mais elevação.
Julia - Sim, é verdade mas muito graças a ter corrigido a minha técnica. E já agora, saltar no estilo "Tano"* ajuda-me. Anteriormente, eu saltava e era como se ficasse com medo de estar no ar, eu ficava muito rija. Eu penso que essa é razão pela qual eu estava a falar o segundo triplo toe loop nas combinações. O braço levantado ajuda-me a manter a rotação e a não dobrar-me no ar. E foi quase sem querer que eu comecei a fazer isso: eu estava a realizar saltos duplos e depois tentei um triplo flip que foi inesperadamente fácil.

*Estilo Tano = saltar com um dos braços elevados durante a rotação do elemento. Chama-se Tano em homenagem ao patinador Brian Boitano pois vou ele que celebrizou essa forma de saltar. 

P - Tens seguido a categoria de senhoras?
Julia - Eu tento.

P - Estás preocupada com o aparecimento de mais e mais jovenzinhas que patinam tão bem e nem sequer é óbvio como derrotá-las?
Julia - O mais importante é que eu compreendo o que tenho de fazer e como. Claro que a situação na patinagem feminina muda. Anteriormente, as patinadoras mais velhas recebiam uma segunda nota mais elevada e isso era suficiente para compensar a falta de dificuldade. Agora as juniores recebem uma segunda nota elevada desde o princípio, logo competir com elas é mais complicado. Mas como diz o Alexei Urmanov, eu tenho de fazer o meu trabalho e deixar o tempo acertar as coisas. Então eu estou a fazer o meu trabalho: melhorar os meus saltos, a expressividade da minha patinagem, novas posições nos peões. Nós vamos trabalhar nisso tudo durante a época baixa* em Sochi. Talvez mais para o Outono nós iremos para outro local para um campo de treinos só para mudar de ambiente, embora nós tenhamos tudo o que precisamos para trabalhar no nosso rinque e eu não quero ir para outro lado e desperdiçar tempo. Parece que eu tenho muito tempo pela frente mas não é o caso.

*Época baixa: período de tempo entre a Primavera e o Verão que decorre entre o final de uma temporada e o início da seguinte.

P - Quanto tempo demoraste a adaptar-te a Sochi?
Julia - Nos primeiros dias eu não tinha tempo para nada. Tudo era novo. Eu estava a fazer o meu melhor para cumprir tudo o que estava planeado. Eu estava sempre a adormecer antes do primeiro treino da manhã. Em Moscovo nós costumávamos patinar a partir da uma hora, então eu nunca precisava de usar o despertador e ia dormir quando calhava. Eu ainda não consigo ir para a cama cedo; então é complicado acordar cedo. Já tentei ler, pintar, ir andar, ouvir música mas o sono não aparece.

P - Também fazes as refeições no hotel?
Julia - Normalmente só o pequeno-almoço*. O resto é como calhar. Eu posso almoçar no hotel mas é má ideia - a comida é uma tentação. Então eu prefiro almoçar noutro local ou simplesmente comprar comida já pronta que eu posso comer no meu quarto de hotel. Eu não tenho a possibilidade de cozinhar para mim própria. Mas eu gosto assim. A vivência em Moscovo era mais complicada mesmo que fosse só para ir dar um passeio. 

*Para os leitores do Brasil: pequeno-almoço = café da manhã

P - Já pensaste em arrendar um apartamento na cidade?
Julia - Não. Isso não é muito seguro na minha situação. Aparentemente existem muitas pessoas a tentar interferir com a minha vida. Eles arranjam a minha morada e o meu número de telefone. Eu não compreendo como é que alguém pode invadir a privacidade de alguém de maneira tão rude e achar que é esperado. Neste momento é mais conveniente ficar no hotel.

 
P - Ainda és reconhecida nas ruas?
Julia - Às vezes as pessoas veem-me na rua e ficam com os olhos arregalados. Eu compreendo que eles estão a tentar lembrar-se de quem eu sou. Nessas situações eu acelero o passo e desapareço.

P - Tens saudades de Moscovo?
Julia - Não. Eu vim aqui por uns dias, visitei sítios familiares, falei com toda a gente. Já posso voltar (para Sochi). Voltarei para Moscovo quando terminar a minha aventura em Sochi.


P - E quanto tempo é que achas que isso vai demorar?
Julia - Pelo menos por dois anos. Depois vamos ver. Talvez queira patinar por mais 8 anos. 

P - A luta contra o teu peso é mais fácil agora do que antes?
Julia - Tive problemas durante o Verão. Eu estava a tentar perder peso; eu ia correr e desistia da comida mas nada ajudava. Eu costumava pensar que "engordar só com ar" era apenas uma expressão mas foi o que aconteceu comigo. Eu colocava uma colher de mel no chá e "bang" um quilo extra. Eu não compreendia o que se estava a passar. Eu não acreditava que todos aqueles horrores que me diziam da puberdade me iriam acontecer a mim. Por altura dos campeonatos nacionais, eu trabalhei imenso para perder um quilo. Por alturas da Taça da Rússia, o meu peso começou a descer - os vestidos começaram a ficar-me largos. Em Sochi, as coisas com a comida são mais fáceis - eu como muitos vegetais e frutas e amo isso.

P - Enquanto ainda estavas a lidar com as dificuldades em Moscovo, ponderaste a hipótese de deixar a patinagem individual? A Sofia Biryukova, por exemplo, mudou para a disciplina de pares e tem tido sucesso.
Julia - Depois de ter patinado no grupo da Marina Zueva, durante o Outono, eu quis mesmo tentar a disciplina de dança. Mas foi mau quando regressei a Moscovo e quase dei com a minha mãe em doida ao insistir com ela para ir para a disciplina de dança. Eu pensei que tudo iria resultar bem para mim: eu sou pequena, flexível, seria fácil fazer figuras de elevação comigo e eu não tenho medo. Nos Estados Unidos cheguei a tentar patinar com um parceiro. Foi muito fixe*. 

*Para os leitores do Brasil: foi muito fixe = foi muito bacana.

P - E o que te impede de fazeres isso depois dos Jogos Olímpicos na Coreia do Sul?
Julia - Terei 19 anos e isso será muito tarde. A adaptação a um parceiro em dança demora algum tempo. Foi o que me disseram quando partilhei essa ideia com algumas pessoas: "Está maluca? As pessoas passam 8 horas diárias só para aprender a deslizar juntos."

P - Podias mudar para a disciplina de pares?
Julia - Não, não quero isso. Eu adoro ver Volosozhar & Trankov e Stolbova & Klimov  mas nem sequer me consigo imaginar como parceira. Só assistir a alguns dos elementos já é assustador. 

P - Quem é que agora te arranja o cabelo antes das competições?
Julia - Eu própria. Honestamente eu não tenho muita paciência para fazer as trancinhas como a minha mãe me fazia. Eu sei como fazer isso e se necessário eu sei criar qualquer penteado.

P - Por que é que te estás a rir?
Julia - Eu recordo-me de como me apliquei para arranjar o cabelo antes da competição na Áustria. Tudo correu mal lá começando pelo aquecimento. Eu fiz um primeiro salto, arranhei-me e deitou sangue embora as meias não se tenham rasgado. Eu tentei um segundo salto e a lâmina ficou presa num atacador da bota, cortando-o completamente. Na tentativa de um flip "tano", atingi o penteado e percebi que todos aqueles ganchos, que demorei uma eternidade a colocar, ficaram na minha luva juntamente com uma madeixa de cabelo. E eu era a primeira a patinar...

P -  Parecia que não estavas com disposição para patinar em Innsbruck , como se não compreendesses para que é que aquilo servia.
Julia - Devo dizer-te porquê? Eu não conseguia apoiar-me no meu pé esquerdo. Em Sochi, nós tínhamos começado a treinar as novas combinações para a nova temporada. Parece que alguns músculos não estavam preparados para aquela pressão ou talvez eu tentei demais. Seja como for, um dos músculos ficou magoado. Eu fui submetida a observação e deram-me indicações e alguns medicamentos mas no geral os médicos aconselharam-me a ficar deitada e a nem sequer andar. Isso aconteceu 4 dias antes da competição.

P - Ponderaste não ir a Innsbruck?
Julia - Iriam acontecer muitos problemas se não fossemos. Eu precisava de outra competição; eu precisava dos pontos. Então decidimos que logo se via. No final atingimos os objectivos.

P - Se começaste a trabalhar em novas combinações, já tens ideia do que queres mostrar na próxima época?
Julia - Ainda está tudo no ar. Estamos a corrigir alguns elementos técnicos, depois vamos reavivar o lutz-toe loop e loop-toe loop. Eu tenho um duplo axel-meia volta-triplo salchow, cobrindo metade do rinque, que é decente e aparentemente é bom. Antes da competição em Innsbruck, o triplo lutz-triplo toe loop estava a funcionar mas eu lesionei-me a seguir. Mas está claro que os saltos estão a voltar bem. 

P - Quem é que coreografará os teus programas para a próxima temporada?
Julia - Temos diversas ideias, tudo com coreógrafos estrangeiros, mas ainda não posso dizer os nomes pois as negociações ainda nem sequer começaram.

P - Tu tens cá um feitio no que diz respeito às coreografias, certo?
Julia - Tem a ver com o facto de eu ser muito exigente com as novas pessoas. E eu não concordo com nada novo até perceber que não me vai ser prejudicial.

P - Durante toda a temporada tenho ouvido que a Evgenia Medvedeva tem patinado um programa que foi feito para ti. Francamente, é uma pena se for verdade. Eu penso que um programa daqueles te assentaria bem.
Julia - É verdade que o programa foi coreografado para mim. Se calhar até me assentaria bem mas eu detestei a música. Eu tentei habituar-me a isso e disseram-me que conseguiria fazê-lo numa semana. Mas isso não aconteceu. Aquela não era a minha música. Eu estava a aguentar aquilo. Mas quando eu perguntei a mim própria por que é que teria de sofrer a temporada toda não encontrei resposta. Quando a Evgenia começou a patinar essa música, eu pensei que ouvir essa música no rinque me iria irritar mas isso não aconteceu. Inconscientemente parece que percebi que aquela já não era a minha música e não me preocupei com isso.


P - Gostas da parte da tua vida que tem a ver com publicidade, viagens e filmagens/sessões de fotos?
Julia - Depende. Eu tento não levar isso muito a sério. É simplesmente uma coisa que tenho que fazer por causa de contratos. Foi interessante fazer parte de um anúncio publicitário. Os criadores queriam mostrar a patinagem artística como os patinadores a vêem, usando um "selfie-stick". Digamos que era uma visão a partir do gelo.

P - Eu recordo-me de quando falámos em Budapeste pouco depois dos campeonatos da Europa 2014 e tu deste a entender que não gostava de patinar, mas que aguentavas. 
Julia - Isso aconteceu na temporada olímpica. Depois disso... Eu tive hipótese de ver como é a vida real e percebi de que não fazia ideia do que era. As coisas também não estavam a resultar no gelo. A partir de determinada altura deixei de perceber como é que deveria viver e o que devia fazer. Eu não queria saber de nada. Agora tento desfrutar. A patinagem, encontrar-me com amigos, a independência. Eu compreendo que a vida real começou agora. No desporto é a mesma coisa. Eu não aguento a patinagem artística mas eu percebo que preciso dela. Talvez eu e o treinador iremos fazer as coisas resultar? Eu também gosto do ambiente no grupo. Eu nunca tinha passado por isso: eu já estive em diversos grupos onde digamos que havia uma guerra interna. É um desporto individual e nós competíamos uns com os outros o tempo todo. Mesmo quando dávamos a entender que estava tudo num mar de rosas. Mais do que isso: eu percebi que o mundo da patinagem artística é muito cruel, ao qual eu tinha de me habituar. E depois mudei-me para o grupo de Alexei Urmanov. Inicialmente eu pensei que eles estavam a esconder alguma coisa. 

P - E?
Julia - Cheguei à conclusão que nem sequer devia pensar nisso. Eu apenas tenho que aproveitar esta relação. É coisa rara no nosso desporto.


P - Do que é que sentes mal falta em Sochi?
Julia - Penso que as pessoas mais próximas. Por outro lado penso que aprendi a valorizar os momentos que consigo passar com os que mais amo.


 


Sem comentários:

Enviar um comentário